Atrevidos

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lá dentro da quaresmeira da linda mangueira
há uma obra em arte,
pitiguaris
de dorso preto
e de peito amarelo,
quase limão,
poetas de orvalho

somos Pitiguaris
cantando aqui e ali,
se a alguns só piamos,
para outros cantamos

nós somos atrevidos,
entoamos canções
que ninguém quer ouvir,
ninguém ousa sentir

se a vida é uma composição,
nela vivemos nos fios,
dançamos em altos e baixos,
pra escrever a nossa canção

mas lá na selva de pedra em dias deserto
a mangueira secou
Pitiguaris
de plumas vermelhas
e de peito aberto
quase irmãos
poetas do asfalto

somos Pitiguaris
escrevemos nos muros,
se a alguns assustamos,
outro sonho embalamos

nós somos atrevidos,
insistimos canções
que ninguém quer ouvir,
só alguns vão sentir

se a vida é uma composição,
nela vivemos nos fios,
dançamos em altos e baixos,
percorrer a nossa canção

Link para a canção

[a letra é parceria com o querido amigo Cometa; a melodia é dele]

bem depois

cada segundo é uma curva
eu como chicletes às metades
como meu pai

há fotografias nas quais
se usa uma pele jovem
e lá, faça frio ou calor
faz outra memória
não há buracos-lentes
por onde o hoje enxergar

mas ali estão as curvas
o arco-tempo que não
sai de si, os ecos, os olhos
tudo desabotoado do que
se pretendia fardar destino

como nós
atados e frouxos
laço de duas medidas
plano a parir direções.

é curioso passar os anos
ver que disso, nada se sabia
e o que se entonava em ser
era só um rabisco firme, pronto
de amarrar a qualquer um pau

quanto ao demo?

Ah, não.

Nada
Nunca
Jamais
Por nada
Nem vem
Nada feito
Nem a pau
Nunquinha
Nem morta
Nem morto
Nem nunca
Sem chance
Nem pensar
Nem por ele
Em absoluto
Nem fodendo
Nem hipótese
Nem por Deus
Nem que morra
De jeito nenhum
De nenhuma maneira

Mas nem…………………….
É réiva, ceiva escorrida na boca que cospe.
Nego. Escarro. Recuso. Refuto. Rasgo. Deploro.
Devolvo. Berro. Desgasto. Expulso. Excomumgo. Desconfesso.
Ponho lá. Afasto. Repudio. Digo que não. Proibo. Impeço. Enterro.
Que é tudo. É um só inteiro e cismado no pouco que há de possível. Só

seriguelas

seri
as seriguelas cheiravam quintal,
da árvore magra no
fundo da casa onde a
gente colhia jóias e
cuspia esquecimentos

o torto era só virar caroço,
desrepresar no mato
o resto de tudo que
se mastigava coisa-séria

ali a meninada juntava tardes
e rasgava juízos diante
de qualquer precisão de caçada,
corrida, bola ou jogo-de-esconde

[mas ali fazia também um querer
de outros projetos, mais terra]

e um fio de futuro
sempre pendia da
janela aberta
– já no finalzinho,
por onde um grito impreciso,
mais bobo do que bravo,
vinha sequestrar o sem-teto
de cada dia.

de tudo, o espírito
da cidade, foi o que
mais herdou

testes divinos

a vida faz excursão
pelos dramas da gente

por que nos vale um
suporte da sua existência
o teste de que o mundo
se alimenta é dos nossos
cotidianos destinos, os nós.

quando final das tardes
vem um tempo brando
em transparecer que a
gente não é mais que as
contas no colar do divino

se há Ele, é o quem evita
perder as vezes das rezas
ao acariciar tantos juízos
enquanto divaga o universo
a parir quebra-cangalhas

e a gente copeja poeiras a
esquecer de que quase vale

nico

o meninico,
feito toda criança,
ia como espelho aberto
entre gritos
iluminar os quartos
escuros da casa

ia a dizer que as
estrelas dormiam nuas
e que a lua, assustada
passava em claro
a noite escura
que era pra não perder-se
das esperanças do sol

tanto medo
[em nada de festas
em nada de danças
em nada de forças]

ia a tombar os copos
de leite preparados
no então do que ele bebia,
sempre a cumprir
missão de ser grande

ia a caminhar torto e lento,
gordo, sob um véu de
príncipe que diziam reto
infalível nas todas direções

herdeiro, ia a vomitar palavras
e se afogar em números do
castelo de letras e contas em
que desenhavam seu busto

ia tímido e estranho,
feio até como os normais,
no palco infinito em que lhe
lançavam dançarino, talento,
infinito desejo de toda gente

ia a perder-se nas noites
em que lhe esperavam festas
bailes e moças-de-pinturas

ia cocho e bobo no dorso
de Branco, enredado e mudo
atordoado nos seus
desconhecidos destinos

ia menino. e só.

nicota ia menino
quando lhe esperavam Rei

ia quieto
quando lhe queriam salmos

ia sujo, escondido,
quando lhe exigiam brilho
capa e fantasias

[essas, deles as mais infinitas
essas, deles que agora suas,
e um tempo de quebranças]

ia espelho,
e também Estado vazio
quando lhe desenhavam
povo e poderes

ia espelho
porque ia fardo
farto de tudo
o que não lhe era
vísceras, ecos
torto de ser um
boneco-de-si
entre as verdades

nico, que queria
pouco do poço apagado
das suas nascentes,

um pouco.

devia de ser outras coisas:
ser uma gente tranquila
desmontada dos outros
destinos,
e ser um brinquedinho próprio
procópio entre seus mundos
sempre eleger caminhos
escolher os pratos
cometer os medos
dizer silêncios

nico,
nico não queria espelhos
doídos
nem nunca revelar segredos
desvios destinos
de quem lhe
fizera existir

serra do vento, 35

da rua daqueles dias
– daquele descidão –
resta um muro amarrado
a encerrar histórias,
um tempo de bola
num mundo que tinha
um tamanho
e cabia

tenho lembrança do futebol
os golaços marcados no portão
– fiz muito mais de 1000,
que me perdoe Pelé.

a gente experimentava
tudo, era a rua nosso território
terra onde plantei e colhi
as primeiras curiosidades.
tanta coisa sempre nova
tanta descoberta
no conforme de cada família

eu fiz um universo com todos
os nomes e todas as gentes,
acho que nunca perdi
os personagens da minha rua

Artur, Maria e Celi
Magnólia, Ademir e César
Osmar, Vilma, Anderson e Fernando
Graça e Nelson
Afonso, Ivone, Breno e Taís,
César, Edi e Verônica
Jair, Marilda, Paula e Renata (ah Renata!)
Maria, Pedro, Paulo, Fábio e Paulo
Cida, Airton, Renata, Milton e Sônia
Oscar, Cida, Jeferson e Kenísia
Sebastião, Maria, Eduardo, Marcelo, Vanessa e eu

tantos de quem emprestei
a moldura do meu tamanho
aprendi palavra e juízo
alegria e lágrima
disputas, amor e solidão

da rua daqueles dias ainda
sou eu a atravessar as ruas
contando essa história

e aquela gente toda a
falar pela minha boca

mais infâncias

a infância é um caminho,
sempre é.

naqueles dias fazia da
colorida capa do edredon
nossa máquina-do-tempo

dali viajamos a todas as terras
de dinossauros: latiam lá fora
enquanto a gente se encolhia
em pânico-gargalhadas

dali evaporamos ao futuro de todos
os carros e gente voadora: lá fora
robôs soldados a latir em ameaça

aquele jardim era uma passagem
cada planta, pedra, bicho
tudo emprestava pra gente o
feitiço de ser outra coisa

canibais por detrás das moitas
ninjas escalando o telhado
a terra que engolia tesouros
areia que matava a fome

tudo como se com vontade
razão e movimento

devo ser
que me explico
pela máquina-do-tempo:

este agora é um futuro
que me abraçou pesado
enquanto carrego
o quem-sabe poder voltar

de quando em quando
penso ouvir o cachorro
misturado a criança, café
e bolo de cenoura

vai ver é que a gente
corre muito
que é pra não estranhar
o mesmo jardim, o sempre
edredon e o susto
de que não vai crescer

foi

sempre vai uma cabeça ingênua
nas longas comitivas da gente.
quando um moleque, boi-de-piranha
a sacrificar em travessia o preciso.

um assum-preto a varar na
cerca os próprios olhos.
uma raposa a roer na
armação a própria pata.

a onça a mastigar filhotes.
Chronos, chavelhudo, a
dilacerar cada cria derradeira,
essa sua tanta condenação.

a dívida não há quem pague.
o poço não há quem seque.
a foice não há quem pare.
a febre não há quem tire.

atire, outra cabeça.
sangra na curva em pirambeira.
perde um pedaço, farto, parto
que é pra cursar, calado,
nova ribanceira.