desarmar a palavra
para que ela atravesse a rua
com o mesmo olhar sereno
de andorinha num fio
desmontar a palavra
para que ela se reúna às crianças
com o mesmo rosto em chamas
de cada primeiro beijo
destilar a palavra
para que ela abrace os vizinhos
com o mesmo peito acelerado
que abria o presente de natal
desfazer a palavra
para que ela invente amizades
com o mesmo sorriso ancho
da descoberta do amor
cultivar a palavra
para que ela escreva bilhetes
com o mesmo carinho que
recebeu um filho
e escrever a palavra
em velhas folhas de papel
para que cheiros e gostos
acompanhem seus textos
para que eles sejam
sempre mais do que bits
no leito de uma telinha
e não parar
– em circunstância alguma –
de
colorir a palavra
para que suje as suas mãos
assoprar a palavra
para que encha os pulmões
aliviar a palavra
para que ofereça abrigo
preparar a palavra
para que mesmo o duríssimo
som de pesadelos e sombras
seja (ao avesso) passo e liberdade
ocupar a palavra
para que ela possa falar
o tanto e o tudo
do que se veja importante
e consumir a palavra
até fazer prateleiras vazias
e enterrar nos museus
todos os dicionários
memória
e testemunha
do silêncio deixado
em infinitos vocábulos
em vastos desertos
semânticos
onde viveu uma
civilização