outro lado

sea

I – Parto

América chegou ao mundo de um jeito apressado, provando o cheiro forte do oceano que ilhava o convés daquele cansado vapor. Vinha empregada de tão fortes vontades de uma vida além das cinzas décadas da guerra, que a batizaram para arremessar os seus ao continente que, dias depois, despontaria no horizonte daquela gente empedrada. Parida numa manhã de quarta-feira, nasceu entre os silêncios de um povo que esperava pelo que não conhecia, emprestando um choro fininho e vagalumeante ao espaço que ungia os corpos desgastados dos viajantes.

Naquelas primeiras horas, a menina foi tomada como um suspiro para quem já não mais sabia confiar no vivente e se acostumara a ver o destino com o receio que se mira os fantasmas. Só por nascer, existiu em maneira de alento. Nos possíveis daquele embrulho recolhido no colo da mãe, fez-se palavra aos que já não eram capazes de saber-se gente. Enquanto no mar nascia um sol, por instantes ela desbichava aqueles rostos esquecidos de si.

Antes, já na sétima hora do trabalho de parto, a mãe desbocou em desaforos na direção de Deusinho. Já homem fraco, sob gritos foi abrigar-se nos fundos da cabina de onde Dessilabado, o estrábico capitão, conduzia a nau por entre caminhos que só aqueles olhos tortos faziam enxergar. Foi ao ver o horror no rosto do quase-pai que o capitão fez menção de abrir conversa, ameaça de mais de hora, até entoar uma frase que Deusinho tomou como oração.

O oceano é um país rasgado por caminhos que engolem destinos, sabe? Minha sorte é ter sempre um olho para cada lado a boicotar os abismos que cada esquina d’água esconde dos leigos. Não é mais? Agora tu também terás em mãos novos destinos. Hora de exercer teu nome, não?

Abraçado por uma vertigem que diluía seus pensamentos sobre o que fazer no desembarque, Deusinho cambaleou de volta ao coberto do convés, onde os líquidos da Mãe ainda eram pisados por quem assistira o parto. Plantado ao lado da mulher com um suspiro ainda cru, viu em esfumaçados ângulos que uma das parteiras lhe colocou nos braços algo pouco mais pesado que o pacote de toucinho que, nos domingos da infância, costumava trazer para casa e depositar no colo de seu pai, então já desbotado pelas memórias. E escutou.

– Pois seu Deusinho. Aí está a menina América, que é sua filha. Hoje o senhor amealha outra boca na família, pois! E junto com ela, novos destinos. Que Deus abençoe a casa e o corpo de quem nela está.

Confuso como se lhe dissessem ordem em língua estrangeira, escutou o povo repetir amém. Olhou América e não entendeu nada. Ela não era a primeira ou a única, mas naquele sem fim desprometido de terras, chorou um par de lágrimas secas ao pensar na criança nascida numa travessia, desligada do solo pelos quais se rasgavam os homens.

– Ela nasce sem guerras. Que seja.

Foi o que se ouviu da Mãe, que já se levantava num dos cantos do. Ainda fraca, fez um sinal de cruz no rosto de América, enquanto olhou de soslaio o semblante ancorado do marido. Preferiu calar a dizer o de sempre, porque já não acreditava mais em milagres.

– Ela nasce sem terras. Retrucou o pai, na delicadeza de quem tem medo.

– Nascemos todos nós. É só questão de confessar as verdades.

– Será que as almas sabem encontrar quem navega? Os barcos?

– Pior é a gente não encontrar as almas, mesmo estacado em terra firme.

Sobre o tabuleiro frágil da menina que experimentava seus primeiros ares sem ainda saber o que já não era ela, pai e mãe jogaram um xadrez de metáforas com as vezes de quem nunca diz o que quer, com tudo às negativas. Era assim a casa deixada na velha pátria, assim os dias no vapor desde o embarque para a incerteza. Assim a vida de quem entendia que tudo que lhes coubera não haviam escolhido.

Numa hora depois, enquanto América já ia desmanchada no peito da Mãe, Deusinho, com a vontade franzina, contornou o convés decidido a deitar-se ao mar. Ia certo sobre o nada e pensava histórias cambaleantes: aquelas posses não eram dele, as vozes não lhe diziam, o destino e o passado escuros.

– Nada é firme. Resmungou ao mar.

Não ia nem por isso triste, mas trazia sobre os olhos um quê de peixe enredado, entre suspeitas de que ali se acabava. Frouxo ao olhar o mar, sendo só coerência entre vazio e medo, nele preferiu atirar palavras em não havendo força para atirar-se. E decidiu pelo silêncio, que também era forma de partir.

O resto de papel num canto da mala menor foi onde se soube de seus juízos pela última vez: em um bilhete. Havia naquilo algo de estúpido e ele sabia, mas lançou nas águas quentes do Atlântico, como portador, um frasco âmbar de um tônico azedo que esvaziara ali mesmo. E perdeu-se na mensagem que viu sumir na ondulação que deixava a nau, como se as águas fossem um ralo por onde lhe escorriam os restos de viver.

Num recorte um tanto mais úmido do mesmo papel, o pouco do ímpeto que lhe restara em um dos cantinhos do corpo o fez rabiscar serenamente sua carta de ponto. E o texto, fez chegar às mãos da mulher.

– Não mais resido aqui. E não falo aos meus, até que acabe por ser esquecido, como coisa. Me faça, então, o favor de me reunir às bagagens, que eu vou.

 

II – Moringa

 

O quieto da viagem naquela maria-fumaça escondia alvoroços. Já em terra nova, ao mirar a jornada vencida e o sol a pino, da Mãe pipocaram vapores ao redor dos olhos já incapazes de chorar. Eles testemunhavam um campo onde não se viam mortos e ruínas. E ainda que percorressem gente pobre e ressequida a capinar a beira dos trilhos, aquela terra não vinha cortada por trincheiras e o povo avistado fazia questão em não se esconder.

A quem vinha pelo vagão, porém, ainda vacilavam em mostrar o rosto ou dizer o nome. Mas a Mãe entendia não haver ali um povo com mãos trêmulas a exibir papéis, a fitar o chão. Se havia vagões de gente farta no vocabulário e na gordura, a ela parecia desgraça menor, que não constrangia. Foi o tempo de suspirar e experimentar a cabeça vazia para que uma vertigem lhe tomasse depois de tão longo tempo. Apagou por um par de horas e sonhou que acariciava uma cabra.

América ia agora no colo de Dilemma, a irmã mais velha que desde os primeiros degraus da adolescência queria ser freira. Sempre metida em vestidos longos, cosidos com a simplicidade que os tempos exigiam, fazia as vezes de mobília familiar. Econômica nas formas e por demais parecida a um criado mudo, nela se apoiavam para as tarefas de repetição, depositavam segredos e amarravam compromissos. Farta dos atributos e sempre quieta, Dilemma carregava consigo uma pequena caixa segredada a chaves. Sob a tampa adornada em ônix, sepultava anéis, uma fotografia de amor e os restos do batom herdado da tia matada por um milico, sob juras de ser puta.

Os ares quentes da travessia derretiam também um restinho de juízo que ainda habitava as crianças menores. Nascidos gêmeos idênticos nos corpos e nas más ideias, os meninos rastejavam sob os assentos como serpentes, seriamente comprometidos em morder canelas. Entre coices dos furiosos e risadas dos aliviados, as dentadas daquele brincar eram, para muitos, a primeira hora de sorrisos depois de longos tempos de desespero.

Anos mais tarde, já a dirigir o circo no qual fariam alguma fortuna, os gêmeos se lembrariam daquele dia no trem como o de mergulho em pia de batismo. Juravam que uma velha refilã lhes mostrara a boceta e mijara neles para vingar as mordidas:

Nos batizaram com mijo quente aos oito anos de idade. Em que merda poderíamos dar, se não em palhaços e patrões?

No extremo do vagão, já num soslaio de ser, Deusinho ia junto às malas com o olhar perdido na paisagem. Calado e vazio dum tanto que parecia não pensar, o ressequido pai não mais enxergava os seus naquele clarão de esperança que crescia conforme o trem comia a estrada de ferro. Ainda ancorado numa curva qualquer do oceano, já não mais reunia coisa com coisa. Quanto mais distante da guerra, mais passada a dor das batalhas e mais fibroso o rasgo a baioneta que trazia ao pé da barriga, menos se explicava.

Já com o sol avermelhado de um resto de dia, chegaram à estação. Num tom amarelo opaco produzido a cal e corante, Moringa era um amontoado de casas escoradas na estação como se partilhassem uma muleta. Aos sons de gramofone, choros, escarros e vendedores a berros, o lugar exalava a certeza de estar vivo e exigia as pessoas a ponto de ajudá-las a esquecer o passado.

Misturados de exaustão e desejo, a Mãe reuniu os seus para esperar a primeira charrete da madrugada, quando partiriam para Colônia. Enquanto Dilemma lhes comprou pão e um patacão de mortadela, e os gêmeos pegaram água na mesma bica em que cagariam quando noite, América bebia um pouco mais de sua mãe para adormecer. Encolhido sobre a mala maior, o pai tinha o olhar grudado num cachorro que o mirava de um degrau de escada.

Se foram às cinco e trinta da manhã. Instalada na boleia ao lado de Noviço, o troncho cocheiro que conduzia a viagem, Dilemma chegou a segurar as rédeas de tempos em tempos, sob os olhos da mãe. Enquanto a mala menor improvisou um berço para América, os gêmeos seguiram em entrevero: correndo pela estrada, atirando pedras nos pássaros e mijando no areião. Cruzaram a porteira da Colônia quando já se avistava uma estrela no céu. Logo atrás da charrete passou o cachorro que já se tornara agregado.

Aqui será a nossa casa e milagre, Deus queira!

– Só não pensem que será fácil.

Por não saber as razões daquele fácil ter sido dito por Noviço, ninguém fez expressão de falar coisa alguma. Cada um tomou um suspiro de ar a seu jeito, enchendo os pulmões de um punhado de alívio. O cão uivou enquanto a charrete desceu a encosta de uma colina coberta de pasto frondoso onde se viam vacas vivas, placas de bosta e quero-queros.

Feita a curva, atravessaram um riacho no seu côncavo mais raso e alcançaram as casas da Colônia. O casario, de um branco fosco salpicado de janelas da cor exata de velas em chama, antecedia em meia légua a sede daquela fazenda sem fim. Chegavam a Antares para desenrolar a vida. Chegavam com a intenção de não mais voltar ao que um dia foram.

– O mundo é sempre pra frente, Dilemma.

– Mãe. Dei ao cão o nome de Futuro.

– Bem seja. Assim o chamamos, sempre.

 

III – Antares

 

– Que a senhora trabalhe por dois. Não contratei inválido.

– O senhor não se preocupe. Não sou de metades.

– A menina nos serve em casa, nas tardes. Isto compensa.

– Pois seja.

A lenda era digna de livros. As terras de Antares seriam fruto de quase oito décadas de esforços da família Geb. Na disputa palmo-a-palmo do severo mercado do café, haviam conquistado de próprio punho e suor aquele ancho braço de terra fértil nas Gerais. Afeitos às disputas, justos no fio do bigode e implacáveis no cálculo, os Gebe tinham feito de Antares uma máquina de poder econômico e uma gaiola política. Diziam eleger quem bem entendessem.

Para as bandas de Portugal a conversa era outra, e corria em segredo. Juiz de direito na comarca de Sagres, o bisavô Geb tinha livrado do açoite, do cárcere e da forca os dois filhos bastardos de um certo marquês Sebastião que muito zelava pela discrição da amante. Em troca, recebeu terras no Brasil e um capital que lhe permitiu engordar um par de gerações. Tomou o navio e nunca mais voltou. Desde então a fazenda ia a reboque do mercado, enquanto o governo socorria nos pregos.

A fazenda era uma máquina dentada. Produzia café e desalmava pessoas com igual arroubo. O flagelo era tamanho que em Antares estava plantado o cemitério mais largo da região, tão movimentado quanto os cafezais. Deitado detrás da capela da qual cuidava um vigário jamais ordenado, o Jardim dos Partidos era um mar de cruzes que os Geb faziam questão de garantir aos seus.

– Em obra nossa, não há quem não possa descansar na paz da mãe terra. Mesmo dos que divergimos, temos por questão enterrar. Alma nenhuma vaga a esmo em terra Geb.

E mantinham a escrita. Se nos anos de escravidão a matança era tão só tema de economia, nos tempos mais recentes a coisa mudara pouco. Quando o morto tinha bom parentesco ou encontrava um raro delegado o amparo para ser tratado além do que bicho, havia exceção. Mas na contínua enxurrada de gente desencarnada, vinham os quebrados à bala nas desavenças; vinham os picados a cobra nos cafezais; vinham os contraídos de febres no ermo daqueles confins. E vinham as moças rasgadas por serem fêmeas.

Sol a sol, foi esta a máquina que o povo Bonanome lubrificou. Nos ajustes, a eles foi dado o direito de cultivar até um alqueire da roça que bem entendessem, para consumo e venda. Para pagar a casa e a estada na Colônia, entretanto, vigorava talha e corveia. A lei dos Geb impunha meio ano de trabalho em suas roças, conforme ordenado.

Com as mãos boas para a terra e num excesso de prática que nunca respeitou relógio, a família fez fartura da roça e do curral. Num sistema de misturas, cultivavam a mandioca e o sorgo, o feijão e o milho, a cenoura, a abobrinha, a beterraba e a couve, com alguma variação. Em tudo obedeciam os tempos da lua e sempre recortavam a terra com mucuna-preta, cravo-de-defunto e bredo de espinho, que era o controle das pragas. Num raro feito naqueles quintais, adquiriram o direito de vender para a casa dos Geb.

Com o tempo passado na firme labuta, uma gosma amarga veio a juntar-se na boca da mãe. Ao mirar Dilemma na lida incessante, os gêmeos a engordar os bichos e o fantasma Deusinho num eterno debulhar milho em silêncio de lacaio, concluiu que não haviam fugido da guerra, mas sido vencidos por ela. Perderam a terra e a língua, perderam gente e história. Cambalearam mundo abaixo para haver onde brotar os filhos e viver sem lágrimas. Mas lá estavam eles: numa casa emprestada e numa terra alheia. Numa pátria desconhecida, numa miragem.

O amargo era também a vontade crescente de deixar Antares; e nisso começou o preparo. Lentamente, os trocados que trouxeram se converteu em capital. Os gêmeos tinham algumas noites de escola, onde aprendiam letras. Dilemma transbordava energia e aprendia os segredos da casa grande. E se o pai seguia franzino e calado, não se cansava em repetir o debulho e a socagem que lhe botavam nas mãos, enquanto América arriscava os passos e vivia à soleira da porta em prontidão de partir.

Para a Mãe, o tempo tornou-se fermento, espera e reserva. Queria dar chão a América e cidade a Dilemma. Queria os gêmeos metidos em farda engomada e longe dos bichos. Queria ter uma fresta para escolher seus destinos. Queria mover-se sem o amém do patrão, num chão que soubesse seu. Sob o olhar cioso dos Geb, que agiam de jeito a prejudicar a amplidão dos seus, viveu curvas e curvas a desenhar a partida. Vivendo à espreita da chance, mudou as ideias. De uma guerra perdida, passou a fazer guerra de resistência nos porões de Antares. E ali cozinhou saídas.

Foi então que os sete anos na Colônia se abriram para terras mais ao sul das Gerais, já quase nas divisas. Com a morte do patriarca e a queda do preço do café, os Geb afrouxaram as rédeas e a janela se abriu. Entregando um punhado de anéis para poder partir, a família deixou Antares num dia frio do mês de julho.

Puxadas por pangarés sem nome, as charretes subiram a colina ressecada pelo pequeno inverno sem que ninguém olhasse pra traz. Não convinha gratidão pelo esforço vendido, tampouco saudades do quanto entregaram aos patrões.

Na primeira charrete, com o tronco esguio e um semblante de dor orgulhosa, ia a Mãe e a menina América, já com sete anos. Levavam as tralhas. Na segunda charrete iam Dilemma, aos dezenove, Deusinho e Futuro, acompanhados de milho, feijão, toucinho e suã. Na terceira iam os gêmeos, que mal deixaram Antares e já jogavam cartas. Levavam gaiolas com galinhas, patos e porcos.

– São muitos dias de estrada, filha. Você vai gostar da cidade.

– Lá o pai vai ficar bom?

– Teu pai é bom filha. Ele só não lembra mais.

– Ele esqueceu de tudo?

– A gente é que esqueceu dele.

– Eu não esqueci.

Com a travessia, encarnaram numa cidade a quase cem léguas dali.

***