tempo para

leio sem ampulheta

quero fatias de nada

faço umas horas à toa

retrocedo, vez e outra

[espero] por cinco minutos

.

respiro. velho mergulhador

.

escuto os dois lados do disco

leio as folhas das árvores

deito a entender um pássaro

reduzo pra alcançar vermelhos

[esqueço] por cinco minutos

.

desligo. cordão umbilical

.

penso coisas que quase

desato nós com os olhos

rabisco velhas canções

intuo montanhas de vento

[desabo] por cinco minutos

.

diluo. pedra feita litoral

.

a imagem é de Alex Iby on Unsplash

uma criança

uma criança

é tudo do que

ainda não desistimos

o cansaço que não chegou

a vontade livre nas ruas

a palavra nua e simples

o tempo que não quer passar

uma criança

é o todo possível das coisas

o antes da história

a memória ao avesso

é o começo; o inverso-do-ponto

jeito mais intenso de amor

casa de vozes


eu moro em uma casa de vozes
eu moro mesmo entre as palavras
moro nos sujeitos, moro no verbo
moro nos pontos, poros, entrelinhas

eu tenho amigos nessa casa
e moro nas suas tantas sentenças
ora moro no amor, ora nas desavenças

se tenho respostas pra todas as coisas
nas perguntas é que eu moro mais
na não-coisa em que a coisa-se-faz

eu moro em uma casa de vozes
eu moro nesta amarra de nós

e sei gostar dos que desato
e também do que empedra
do que não vai
que não se diz
que não se inscreve
em cada um de nós

parte de mim

water-1501291_1920
vai, é teu tempo de navegar
solta os laços
vai ter o mar
se há nós
te atando ao cais
toma o vento
e parte de mim

vai contigo sob o luar
noites tristes
são sempre assim
arremesso e arrebentações
tantos portos e solidões
e o mar não quer terminar
não há volta e onde atracar
se um naufrágio chamar por ti
pede ao tempo pra te enredar

melodias com teus irmãos
não ancora teu coração
vai às ruas vai caminhar
deixa o mar se esquecer de ti

numa esquina um dia comum
quando o sol já morar em ti
diz ao céu um verso qualquer
pede ao vento trazer pra mim

que te escuto tão longe amor
e tão longe é dentro de mim

Imagem de dakhlallah, Pixabay.

insistências

concrete-wall-3176815_1920não há verso
cansado demais

as aves sim
se cansam
os homens sim
se esquecem
as pedras sim
desgastam
e todo tempo
longo se esvai

mas palavra
não cessa
e vontade
não passa

pois até os
mortos falam
nos vivos

memórias que
podem tanto
segredos que
mudam tudo
sonhos que
rasgam corpos

e até as paredes
quando escutadas
têm melodias
e conselhos
a dar

sete recortes para partidas

rain-731313_1920
I
você já era tarde;
no adeus,
o alívio me fez febre

II
já não estás;
eu, farta,
vôo ao próximo verão

III
nem o fiz um aceno;
saltava, sã,
noutra estação

IV
não te vi sair;
vigiava o arroz,
ligeiro mais importante

V
tantas vezes morri;
por te apagar
brotou-me como sorrir

VI
temia as memórias;
sozinha, aprendi
a lembrar o futuro

VII
parti quando calamos;
esse silêncio, só, é
a cantiga que te fiz

se-tem-bro ser-tem-po

clock-1031503_1280
o tempo é nada disso
não vem a nos devorar

não torna o amor sereno
não dilui nossas pedras
não faz das memórias ocos
e nem nos põe a pensar

o tempo, pois, não é menos
não joga no vem-e-vai

não vem pra armar o palco
não faz pra nos confortar
não muda as nossas caras
não vem cá desenganar

o tempo, então, é só brisa
que o corpo tenta inalar

pra ver o que se enxerga
morar naquilo que passa
saber onde enfim se pisa
ser um-pouco ancorar

o tempo é pura presença
vem denso assim como mar

e bate no peito em ondas
e nos lança a balançar
e assusta quem já não quer
e amarga quem já não está

o tempo é nada disso
não quer gente rarear

é contingente infinito
redor que bem sempre está
e enquanto o cabra respira
não teme nunca em faltar