uma palavra

com a palavra a
eu rabisquei o corpo
onde o amor nunca envelheceu

e fui aos cantos
da tua pele, que era
o rasgar em versos molhados
de tangerina
aquilo que só a mim
cabia caber

com a palavra a
eu fiz meu corpo
descansado e frouxo,
que era onde tu
acampaste teus dias longos
de pesares e pó

com a palavra a
eu rabisquei
cores rubras nos
olhos de quem nos cuspia,
e provoquei vulcões,
te inundei de mim
a fazer uma casa de meninas

e corri.
riscos que o papel pedia
as ruas do nosso bairro
as provas na multidão
o jornal
os olhos
na tua direção

com a palavra a
desenhei um dia
que era para ser nosso só
e fotografar o tempo
e tê-lo
de adormecer os olhos
e de começar sem porquê
qualquer bobagem
que se queira
chamar amor

para gostar do tempo

wildflowers-3571119_1920

uma janela
xícara de café
pão quente e manteiga
uma moça lendo revista
bolo de cenoura
partida de futebol
Guimarães Rosa
a sombra de uma árvore
uma longa caminhada
um beijo da mesma moça
memórias de velhos amigos
cozinhar molho de tomate
saudade de viajar
um bebê adormecido no colo
madrugada silenciosa
edredom, Almodóvar, chocolate
melão maduro

estar aqui,
e pensar que ainda é cedo

pois

é, maria,
o amor é assim,
esse rio caudaloso
largo traiçoeiro
rasgo na terra
que um se pensou uma.

é o que há de ser. num só isso.

se há terceira margem,
é o navegado.
onde a gente trança
um querer balançado
lado a lado
no tudo tronco vazado que vai passando.

pra viver é o preciso, nem menos:
braço forte no remo
confiança no traçado
saber nadar quando emborca
e fé de que nenhuma água
larga que seja
se dá em intransponível sem fim.

o amor, maria
vai no assim do tosco. toco.
não está nem no lá nem no cá
mora é no remado meio
que de quase em quase
a gente se deixa alagar

quanto ao demo?

Ah, não.

Nada
Nunca
Jamais
Por nada
Nem vem
Nada feito
Nem a pau
Nunquinha
Nem morta
Nem morto
Nem nunca
Sem chance
Nem pensar
Nem por ele
Em absoluto
Nem fodendo
Nem hipótese
Nem por Deus
Nem que morra
De jeito nenhum
De nenhuma maneira

Mas nem…………………….
É réiva, ceiva escorrida na boca que cospe.
Nego. Escarro. Recuso. Refuto. Rasgo. Deploro.
Devolvo. Berro. Desgasto. Expulso. Excomumgo. Desconfesso.
Ponho lá. Afasto. Repudio. Digo que não. Proibo. Impeço. Enterro.
Que é tudo. É um só inteiro e cismado no pouco que há de possível. Só

otero

o mar não vai saber vestir em ti
nem é cedo o dia em que chegaste
e não há águas que te façam uma
quando tu és vulcana de pátrias

tu segues um encontro de cores
a língua enrolada de teus pares
uma mina a escorrer maratonas
em conta da água que não te cabe

tu és um aviso atrasado de enchente
e o colo quente que a cidade perdeu
esta outra refeita em cópia bruta
lamina d’água no oco do paredão

nada, não te cabe o coito das águas
nem o vaso partido, o balde, o poço
nem o lago andino, o rio de-janeiro
nem cais nem tu nem mar nem tina

pequenas palavras de amor – 2

e tudo aquilo
que era só
o quase-amor
foi derramar em palavras

aquela brisa
dos confins de
onde a gente
mais silencia,
concluiu em sim
corpo físico palavra

feito um vôo
de borboleta
na decisão de
acomodar-se nos
ares, no repouso
de camas invisíveis
em que só
se destina em sono
quem crê que o
si mesmo
vai onde não se está

feito o tempo
em que cada um
é aquele peixinho
embebido na boca
de quem também
já partiu

os destinos vão
sempre sonhar
com alguém que os
rodeie com o
sorriso de quem
sabe ordenar em desaviso:

todo aviso, pois,
é a gente mesmo
marcado em mandanças

este imperativo
de todo querer
pétreo que
ribanceia
dentro da gente
sempre a
exigir das mãos
o impossível.

quem quer, aliás,
é aquele que
em si, jamais
se conhece

aquele que desmanda
em ato, em cenas de
repetitivas pernadas
corpo a fora
tudo aquilo
que a gente
não
quer
ver

o jornal

ler o jornal
não me acode

não há um só tempo
no olho amargo
destes tipos

e encontro uma prosa
seca nos dentes de quem
articula os fatos

um gosto de já morreu
como se fosse
tudo escuro no amanhecido
e só lhes coubesse
ser Creonte num texto
que só enxerga nadas
e que me cobra caro
a luz e o doce
que faço ver
nos arredores da
minha cidade

ler o jornal
não me acode

porque ali reza a feia
cartilha dos brancos
que nunca souberam
pisar o chão
com medo de enraizar
prazeres na terra fértil
dessa cabeça pátria
misturada que apenas é

porque os diários
são uma coleção de nãos,
gene do arame que
insiste em cercar as ruas
e deitar os campos

ler o jornal
não me acode

porque hoje é um dia
de semear amplos,
e de regar de tempo
gana e suspiro
as direções do agora

fino

um fio de frase
corre fino, fininho
no canto de cada boca

ali se desenrola a
história que cada um
quer dizer de si

porque todo passarão
só voa mesmo quando
fala em roda que
foi capaz de pular.

fazer-se é mesmo
sina difícil, encapelada:
a gente só desenrola
quando ameaça contar

e é aí, no dito, que vão
os brincos das coisas.
um pingo de palavra
sempre embeleza um oco

que mais que o beijo,
o que faz valer a boca
é sua fome em narra

seriguelas

seri
as seriguelas cheiravam quintal,
da árvore magra no
fundo da casa onde a
gente colhia jóias e
cuspia esquecimentos

o torto era só virar caroço,
desrepresar no mato
o resto de tudo que
se mastigava coisa-séria

ali a meninada juntava tardes
e rasgava juízos diante
de qualquer precisão de caçada,
corrida, bola ou jogo-de-esconde

[mas ali fazia também um querer
de outros projetos, mais terra]

e um fio de futuro
sempre pendia da
janela aberta
– já no finalzinho,
por onde um grito impreciso,
mais bobo do que bravo,
vinha sequestrar o sem-teto
de cada dia.

de tudo, o espírito
da cidade, foi o que
mais herdou

pequenas palavras de amor

porque
uma barriga
pode piscinar
um mar

só na razão que
uma moça
pode artesanar
o tempo

e carregar todo
o será da gente
no escuro do
seu umbigo

(…)

mas quando?
isto tudo
vinha ali,
em tempo-a-tempo,
as mensagens

(…)

todo aviso, pois
é a gente mesmo
marcado em
mandanças

este imperativo
de todo querer
pétreo que
ribanceia
dentro da gente
sempre a
exigir das mãos
o impossível

e é só.
é tudo.